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A quebra dos ciclos literários e outros pensamentos sobre a literatura nacional

“É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte” — Gal Costa


Enquanto tento me contextualizar como pessoa que está vivenciando fatos históricos, acho necessário analisar como a literatura, seja nacional ou estrangeira, tratou o que temos vivido até aqui.


Veja bem, estamos vivendo, desde as eleições de 2016, uma onda radicalmente conservadora em todos os hemisférios possíveis e impossíveis. Foi o pior dos tempos, Dickens. Apenas. E, então, para compreender os passos que nos trouxeram até aqui, precisamos olhar um pouco mais para trás. Afinal, é preciso conhecer a História a fim de não repeti-la.


Precisamos entender que nossa Literatura pode ser um pouquinho problemática. Não toda, mas parte dela. Como exemplo disso, podemos utilizar o ilustre nome de Monteiro Lobato. Ele mesmo, o rei da literatura infantil no Brasil. Além do Sítio do Pica-pau Amarelo, Lobato se esforçou para criar uma literatura adulta questionável.


Em sua obra “O Presidente Negro”, o autor apresenta ao público o ordinário e mediano Ayrton Lobo, que tem seu primeiro contato com o cientista Benson e sua filha. O cientista, por sua vez, cria uma máquina capaz de espiar o futuro. O salto temporal se dá em 2228, quando a ruptura do eleitorado branco norte-americano possibilita (problemático) a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Sem querer me alongar muito, o eleitorado branco tenta, de todas as formas, derrubar o presidente. Contudo,


‘Na chamada Convenção da Raça Branca, tomam decisões e, logo, apresentam um novo procedimento tecnológico, capaz de tornar os cabelos crespos dos negros em lisos. Todos os negros dos Estados Unidos submetem-se ao procedimento que é, na verdade, uma faca de dois gumes: se os cabelos ficam lisos, quem se submete ao tratamento torna-se estéril.”

Você consegue ver como uma suposta ficção especulativa, produzida há décadas, influencia e molda um pensamento atual?


Isso me amedronta. Me amedronta porque nossos primeiros traços de uma ficção especulativa foram traços de discriminação e desvalorização de um grupo minoritário. Àquele momento, negros, mas poderia ser um ataque às mulheres, à comunidade LGBTQI+, aos nativos. E isso me mantém em um estado de alerta forte o suficiente para que eu entenda que nós, como leitores, literatas, consumidores de material literário, não podemos descansar os olhos quando a literatura se torna arma de ataque. Quando a literatura ultrapassa o limite do confronto natural, é quando nós precisamos assumir uma posição combativa a isso.


E em termos de posição combativa, não digo aqui que a crítica seja a única forma de oposição. Podemos, por exemplo, ressaltar a fantástica Emília Freitas, mulher, nordestina, escritora de uma das primeiras histórias de ficção científica do Brasil. Publicado em 1899, A Rainha do Ignoto conta, de forma alternada, a história do doutor Edmundo e da Rainha do Ignoto, personagem que dá nome à obra.


Pode-se afirmar que a obra de Emília Freitas, no finzinho do século XVIII, tem muito a ver com a quebra de padrões impostos às mulheres a partir dos movimentos feministas. Com personagens que travam suas próprias guerras sobre amor, casamento e violência, a Rainha do Ignoto as apresenta à Ilha do Nevoeiro, lugar habitado apenas por mulheres exercendo tarefas nas artes e ciências. Vai falar que isso não te lembra as maravilhosas gregas e suas comunidades femininas?


A sua existência é de um valor absurdo para a comunidade literária atual, uma vez que estamos crescendo a cada dia no resgate de mulheres fenomenais que foram apagadas das narrativas literárias em terras brasileiras. E então, indago: precisamos utilizar obras recheadas de preconceitos como marco para uma literatura especulativa no Brasil? Ou estamos apenas reproduzindo o que têm nos enfiado goela abaixo porque é conveniente?


Falo com tranquilidade que em todos os anos de graduação, mal ouvi falar sobre mulheres na literatura brasileira. Imagine na ficção especulativa nacional. E todo o tempo em que poderia estar pesquisando sobre elas, em busca de valor a ser acrescentado à academia, precisei gastar tempo e habilidades pesquisando homens que eram apenas… homens. Muitos não traziam inovação à mesa, e para a academia, tudo bem. Afinal, eles são o cânone. Sabe Deus o que querem dizer com isso.


O meu ponto não é declarar uma guerra aos homens escritores do nosso país, mas jogar um pouquinho de sal nesta ferida que precisa ser aberta e analisada de uma maneira mais precisa e cuidadosa. Pergunto-me até quando daremos palco a uma literatura racista que, sinceramente, não nos acrescenta riqueza de vida.


Sinto-me revigorada em viver um novo momento da literatura brasileira em que estamos tendo voz. Vozes diversas, de inúmeros lugares e cenários. Vozes com vivências enriquecedoras que estão adicionando bagagem e valor a nós e à próxima geração de leitoras que eu creio que está se movimentando.


Que sejam novos tempos na nossa literatura. Que possamos deixar para trás todo o desembaraço de uma literatura normativa e ditatorial.


A Literatura é a chave!

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