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Pode o escritor se tornar uma página em branco?

Atualizado: 28 de mai. de 2020


Em um filme chamado “Mensagem para você” (1998), a protagonista Kathleen Kelly (Meg Ryan) relata ao seu par romântico, Joe Fox (Tom Hanks), como sua mente se torna um branco quando ela precisa ser assertiva, má ou rude. Sua mente fica extremamente… vazia. Os pensamentos somem, evaporam, não importa. Sua mente é uma página em branco, um pedaço de internet com o temido erro 404, uma janela sem paisagem. Completamente vazia e em falta de significado. Neste contexto, penso como a mente do escritor torna-se uma página em branco quando mais se precisa dela para desenvolver um enredo, dar continuidade a um artigo, ou até mesmo na hora de escrever a lista do mercado. Se a mente do escritor, que é a sua maior máquina, torna-se um vazio, o escritor também está em branco?

Eu estava no meio da faculdade de Letras quando descobri que o fato de precisar ler muito matou o meu hábito de ler muito. E isso é muito comum. Muitas pessoas caem no conto de fadas de que na faculdade estuda-se apenas aquilo que gosta, que faz o coração bater mais rápido, mas a essa é a maior (e pior) farsa que nos contam na nossa jornada estudantil. Desculpa estragar a magia para os alunos do “terceirão”. O que fiz aqui foi, basicamente, contar a uma criança que o Papai Noel não vem porque… ele não existe. Sinto muito, crianças. Retomando, meu hábito de leitura estava desmaiado, morto, inconsciente, já não existia. Em meio a toda essa agonia, peguei-me pensando “se não estou lendo, não sei mais quem sou. Minha identidade é leitora. Muito prazer, Gabriela Leitora. É assim que eu me apresentaria se os modos fossem nesta estrutura, não?”. Isso fez com que eu passasse dias amargurada por estar perdendo a minha identidade aos poucos. Pior: o que estava tirando a minha identidade era algo que eu sempre desejei com todo o meu ser. Como, então, proceder?

Foram longos debates solitários até eu entender que eu era, sim, Gabriela Leitora, mas não só isso. E que, afinal, era questão de tempo até que eu fosse fisgada por um livro completamente sedutor e cativante. Minha identidade não era apenas Gabriela Leitora, como dito anteriormente. Minha identidade era Gabriela Filha, Gabriela Amiga, e a lista segue. Decidi, então, que ser leitora não seria o meu único modo de viver, mas seria um dos modos de viver. Foi um caminho árduo, mas satisfatório. Assim como as mães falam sobre seus partos, sim? Dolorido e desesperador, mas ouvir o chorinho do pequeno humaninho… Gratificante!

Bem, floreei bastante a narrativa para chegar até 2020. O ano do caos e terror que não sabemos qual episódio catastrófico pode se aproximar. Ocorre que eu, Gabriela, peguei-me, novamente, contestando a minha identidade Gabriela Escritora por não conseguir escrever. Não apenas escrever, mas escrever algo satisfatoriamente bom para o meu padrão perfeccionista. Eu não queria escrever, eu precisava escrever. Já falei aqui sobre a nossa necessidade de escrevermos histórias para que possamos viver, e isso estava sendo colocado à prova nos últimos dias.

Escrevia, apagava, escrevia de novo, apagava de novo. Nada parecia bom. Pelo menos, nada parecia bom o suficiente. Escrever para o Coletivo é uma das minhas maiores honras na minha recente carreira literária e eu sei como eu prezo ter um bom texto pronto para enviar para a minha editora-chefe. Mesmo perdendo prazos, algumas vezes, eu entendo a importância de entregar excelência em todos os meus trabalhos. São os ossos do meu ofício.

Precisei, então, viajar a meados de 2017 para compreender qual foi o mantra, o ritual, as palavras e pensamentos que me tiraram daquele torpor de dor e de sentimentos de inutilidade e incapacidade. Eu, Gabriela Escritora, tendo que admitir que minha identidade não é baseada no que tenho ocupado os meus dias? Seria eu, então, uma página em branco? Fui o arqueiro e, agora, a presa? Não me parecia certo. Mas lá estava eu, sendo confrontada e, por certo, confortada pela Gabriela de 2017, que me lembrava que além da Gabriela Escritora, sou a Gabriela Um Milhão de Coisas. A escrita é parte fundamental de quem sou? Absolutamente. Sou filha das Letras e muito bem cuidada, obrigada. Porém, não é só disso que sou feita. Sou feita do lazer sem obrigações, das leituras preguiçosas que demoram a ser finalizadas por causa de um enredo bom demais do qual não quero me despedir. A frase latina otium cum dignitate nunca fez tanto sentido para a minha cabeça.

Escrever é o que faço com paixão, amor, desejo. Mas não posso me definir a algo que pode ser destituído facilmente da minha existência. Não desvalorizando o meu ofício, mas qualquer tragédia ou fatalidade destinada à minha coordenação motora, minha visão, pode arrancar de mim absolutamente todos os alicerces da minha escrita. Obviamente, a minha Arte permaneceria, mas você consegue me entender? Além da escrita, há muito mais entre nós do que as letras que digito aqui. É essa conexão de que somos, de certa forma, conectados pela Literatura, sim. Mas e quando ela passar? Ficaremos velhinhos, bem caquéticos, alguns de nós não poderão escrever, outros não poderão ler, mas o que permanecerá será o que é maior do que sonha a nossa vã filosofia.

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